Coluna | A série do Disney+ que está dando o que falar. “Uma Família Perfeita” ou seria “Uma fachada Perfeita”?

A narrativa acompanha Kristine e Michael Barnett ao adotarem Natalia Grace, uma menina ucraniana com nanismo, e a subsequente desconfiança que se instala quando comportamentos atípicos levantam questionamentos sobre sua verdadeira idade e intenções. Para além do suspense, a série oferece um terreno fértil para analisar, sob a ótica da psicologia, as motivações e os comportamentos dos personagens envolvidos.
Inicialmente, a decisão de Kristine e Michael de adotar pode ser vista através da lente do altruísmo e do desejo de formar uma família (Post, 2011). A adoção, em muitos casos, é motivada por um genuíno desejo de oferecer um lar e oportunidades a uma criança necessitada. No entanto, a idealização da criança adotada, um fenômeno comum, pode levar a expectativas irreais e dificuldades na adaptação quando a realidade se mostra diferente do esperado (Brodzinsky & Pinderhughes, 2016). A crença em construir a “família perfeita” pode ter cegado o casal para sinais iniciais de que Natalia poderia ter necessidades ou um histórico mais complexo do que o apresentado inicialmente.
À medida que Natalia começa a exibir comportamentos “incompatíveis” com sua suposta idade, como agressividade e conhecimento sexual precoce, a reação de Kristine e Michael evolui do estranhamento para a desconfiança e, eventualmente, para o medo. Essa escalada emocional pode ser compreendida através da teoria da atribuição (Heider, 1958, revisitada por Kelley, 1973). Inicialmente, o casal pode ter atribuído os comportamentos de Natalia a dificuldades de adaptação ou traumas passados. Contudo, a persistência e a intensidade desses comportamentos podem ter levado a atribuições internas e estáveis, ou seja, a acreditar que esses comportamentos eram intrínsecos à personalidade de Natalia, alimentando a suspeita de engano.
A crescente paranoia de Kristine, em particular, pode ser analisada sob a perspectiva do viés de confirmação (Nickerson, 1998). Uma vez que a suspeita sobre a verdadeira idade de Natalia se instala, Kristine pode ter começado a buscar e a interpretar informações que confirmassem essa hipótese, negligenciando evidências que pudessem sugerir o contrário. Esse processo pode ter sido intensificado pelo isolamento social e pela falta de apoio adequado, fatores que podem exacerbar sentimentos de ansiedade e desconfiança (Cacioppo & Hawkley, 2009).
Por outro lado, o comportamento de Natalia, tal como é apresentado na série, levanta questões complexas sobre desenvolvimento infantil e psicopatologia. Se comprovado que ela era mais velha do que aparentava, seus comportamentos poderiam ser interpretados dentro do espectro de transtornos de conduta ou outras condições que se manifestam na infância e adolescência (American Psychiatric Association, 2013). No entanto, se ela era de fato uma criança, seus comportamentos agressivos e sexualizados poderiam ser sequelas de traumas precoces, negligência ou mesmo exploração (Cicchetti & Toth, 2005). A dificuldade em obter um diagnóstico preciso, exacerbada pela raridade de sua condição física, contribuiu para a confusão e o medo da família.
A dinâmica familiar disfuncional que se desenvolve, marcada pela desconfiança mútua e pela escalada de conflitos, pode ser entendida através da teoria dos sistemas familiares (Bowen, 1978). As ações e reações de cada membro da família se influenciam mutuamente, criando um ciclo vicioso de tensão e isolamento. A falta de comunicação aberta e a dificuldade em buscar ajuda profissional adequada contribuíram para a deterioração da relação familiar.
Em suma, “Uma Família Perfeita” oferece um olhar perturbador sobre os limites da parentalidade, a fragilidade da confiança e a complexidade do comportamento humano. Ao analisar as ações de Kristine, Michael e Natalia através de referenciais teóricos da psicologia, podemos obter uma compreensão mais profunda das motivações e dos processos que levaram essa adoção a se transformar em um drama judicial e pessoal. A série nos convida a refletir sobre a importância da comunicação, do apoio profissional e da desconstrução de expectativas idealizadas na construção de laços familiares saudáveis, especialmente em situações de adoção com históricos complexos.

 

Texto: Luam Ferrari

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