“Matéria escura do DNA”: brasileiros descobrem chave para aumentar produção de biocombustível

Pesquisadores brasileiros encontraram na “matéria escura” dos genes de bactérias do solo a chave para aumentar a produção de biocombustíveis a partir de resíduos agrícolas. Os cientistas identificaram, em cultivos de cana, a bactéria geradora de uma enzima que usa cobre para facilitar a quebra da celulose dos resíduos, proporcionando matéria-prima para combustíveis, papéis e tecidos, entre outros produtos. O nome proposto para a bactéria é Candidatus Telluricellulosum braziliensis, por ter sido isolada no Brasil e pelo efeito na celulose. A descoberta, que teve a participação de pesquisadores da USP, é descrita em artigo publicado na revista Nature.

“Neste trabalho em particular, olhamos para genes desconhecidos de microrganismos desconhecidos de solos cobertos por resíduos de cana-de-açúcar, que mostravam potencial para biotransformação da celulose, o que chamamos de ‘matéria escura do DNA’”, afirma ao Jornal da USP o pesquisador Mario Murakami, do Centro Brasileiro de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas (interior de São Paulo), autor principal do artigo. “Essa pesquisa tem o impacto de melhorar o processo de transformar resíduos vegetais em bioprodutos, como biocombustíveis.”

Murakami conta que a “matéria escura do DNA” se refere ao material genético de microrganismos que não podemos cultivar em laboratório. “É como um mundo oculto de informações genéticas que estamos apenas começando a explorar”, destaca. “Essa ‘matéria escura’ pode ser a chave para a descoberta de novas enzimas e processos biológicos.”

O pesquisador explica que a metaloenzima vem da bactéria cujo nome proposto é Candidatus Telluricellulosum braziliensis, encontrada no solo brasileiro. “Ela foi descoberta em um grupo de bactérias chamado UBP4, que significa ‘filo bacteriano não cultivado 4’, que são relativamente desconhecidas e nunca foram cultivadas em laboratório antes”, relata. “A metaloenzima, chamada CelOCE [do inglês, Cellulose Oxidative Cleaving Enzyme], é um tipo especial de enzima que usa cobre para ajudar a quebrar a celulose.”

“A participação de nosso grupo de pesquisa aconteceu na etapa de caracterização do centro metálico de cobre existente na enzima. Quando metais estão presentes em estruturas de enzima, isto quer dizer que participam do processo de catálise [quebra de moléculas] por ela realizado, ou seja, são importantes para sua função”, explicou ao Jornal da USP o professor Antônio José da Costa Filho, do Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, um dos autores do artigo. “Sendo assim, é relevante saber que tipo de metal está presente e se a estrutura em seu entorno muda na presença de moléculas que se ligam à enzima ou se são mudadas as condições do ambiente.”

“Usando uma técnica conhecida como Ressonância Paramagnética Eletrônica, detectamos a presença do íon de cobre e alterações em seu arranjo decorrentes da presença de algumas outras moléculas com as quais a enzima interage”, descreve o professor da FFCLRP. “Foi uma participação que ajudou a compor o robusto conjunto de dados disponíveis no trabalho.”

Abrindo cadeados moleculares

“Atualmente, a degradação da celulose é feita usando enzimas chamadas de hidrolases glicosídicas e monooxigenases, que funcionam como ‘tesouras moleculares’, cortando a celulose em seu constituinte básico, a glicose”, observa Murakami. “Ao contrário dessas enzimas, a CelOCE funciona ligando-se ao final da cadeia de celulose e ‘cortando’ uma única unidade, produzindo ácido celobiônico. Ela por si só não tem capacidade de liberar glicose, mas atua abrindo ‘cadeados’ moleculares para a ação de outras enzimas conhecidas.”

De acordo com o pesquisador, a CelOCE tem o potencial de melhorar significativamente a produção de biocombustíveis e outros bioprodutos a partir de resíduos vegetais. “Quando combinada com coquetéis enzimáticos existentes, ela pode aumentar a quantidade de açúcar obtida da celulose, tornando o processo mais eficiente e econômico”, destaca. “Para fins comparativos, as enzimas LPMOs, que foram a última grande revolução na área de enzimologia de carboidratos, há mais de 20 anos, proporcionam um aumento de aproximadamente 10%, enquanto a CelOCE aumenta em mais de 20% sob as condições testadas em planta piloto.”

“Este processo é importante para diversos setores industriais, incluindo a produção de biocombustíveis, papel e têxteis. Ao quebrar a celulose, podemos transformar resíduos vegetais em produtos valiosos”, salienta Murakami. “Essa descoberta modifica esse paradigma da degradação da celulose pela vida microbiana, adicionando uma nova classe de enzimas que são estruturalmente e funcionalmente distintas. A bactéria específica onde a enzima foi encontrada foi proposta para ser chamada de Candidatus Telluricellulosum braziliensis, pois foi isolada no Brasil e tem potencial celulolítico.”

Segundo o pesquisador, o trabalho é um dos desfechos de um programa de pesquisa e inovação do CNPEM para o mapeamento do patrimônio genético da biodiversidade brasileira e subsequente mineração para fins biotecnológicos. As aplicações incluem as áreas de biotransformação industrial, biocombustíveis, saúde humana, nutrição animal e agricultura.

“Usando uma abordagem interdisciplinar desde multi-meta-ômicas, enzimologia, engenharia genética, passando pela resolução da estrutura 3D da enzima no acelerador de partículas Sirius até o escalonamento na planta piloto do CNPEM para validação”, diz Murakami, “descobrimos uma nova classe de enzimas que atuam especificamente na celulose, o mais abundante polímero do planeta”.

Pesquisadores de CNPEM, USP, Aix Marseille University e CNRS (França) e Universidade Técnica da Dinamarca contribuíram para o estudo. “Vale ressaltar que todos os experimentos foram realizados no Brasil, tendo a covalidação de alguns experimentos acontecidos em laboratórios do exterior”, conclui o pesquisador.

Por Júlio Bernardes | Jornal da USP

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