Coluna | Um ano depois das águas: Os reflexos psicológicos da enchente no Rio Grande do Sul

As águas que inundaram 478 dos 497 municípios gaúchos deixaram marcas profundas não apenas nas estruturas físicas, mas também na alma de um povo conhecido por sua resiliência. Um ano depois, enquanto prédios são reconstruídos e estradas restauradas, uma pergunta permanece: como estão as cicatrizes invisíveis deixadas pela tragédia?
Os números impressionam: mais de 180 mortos, 25 desaparecidos e 96% das cidades atingidas. Cerca de 2,4 milhões de pessoas foram afetadas pelos efeitos das chuvas nas regiões Central, dos Vales, Serra e Metropolitana de Porto Alegre. Mais de 442 mil moradores tiveram que deixar suas residências, sendo aproximadamente 18 mil em abrigos e 423 mil desalojados. Em várias cidades, no período entre 27 de abril e 2 de maio, chegou a chover de 500 a 700 mm, correspondendo a um terço da média histórica de precipitação para todo um ano.
Um ano depois, cerca de 400 pessoas ainda vivem em abrigos públicos em oito cidades do estado, esperando por programas de habitação que possam oferecer uma solução permanente. Para além da reconstrução material, há um desafio ainda maior: a reconstrução emocional e psicológica.
Segundo estudo publicado na revista Psicologia & Sociedade (2012), desastres naturais como enchentes provocam intensas reações psicológicas nas vítimas. A pesquisa, que investigou as perdas vivenciadas e as consequentes reações psicológicas de vítimas de enchentes, aponta que os conteúdos emergentes sugerem maior atenção à saúde mental de pessoas atingidas por desastres, bem como a necessidade de mais pesquisas na área para respaldar as intervenções realizadas neste contexto.
“Os desastres naturais se traduzem em verdadeiras tragédias ou dramas humanos, justificando a preocupação de se levar em conta os aspectos envolvidos, de atenção à saúde física, às perdas materiais e, também, entender a aflição e as consequências psicológicas decorrentes dessas situações”, afirmam Sá, Werlang e Paranhos (2008), citados no estudo.
Um termo que já vem sendo utilizado por especialistas é a “Ansiedade climática” ou “Eco-ansiedade”, que descreve um sofrimento mental em resposta a alguma catástrofe climática. Segundo a Associação Americana de Psicologia, trata-se do “medo crônico da catástrofe ambiental”, embora ainda não seja considerado um diagnóstico clínico.
O professor Nilo Torturella, da pós-graduação em Psiquiatria da PUC-Rio, explica que essa condição é um transtorno pós-traumático em que a pessoa revive as emoções traumáticas do fato que representou algum problema à sua integridade. Em entrevista publicada em maio de 2024, ele reforça que o conceito de “gatilho” é real nessas experiências: os gaúchos provavelmente terão dificuldades para lidar com chuvas fortes, frequentar lugares com rios ou ver cenas que os remetam ao trauma de alguma forma.
O luto pelas perdas materiais e humanas é outro aspecto fundamental no processo de recuperação psicológica. “O luto é como um pêndulo. A pessoa não necessariamente estará o tempo todo abalada e triste. Depende da circunstância e da resiliência pessoal do paciente”, explica Torturella (2024).
A resiliência, essa capacidade de enfrentamento e transformação da situação em aprendizado, varia de pessoa para pessoa e é influenciada por diversos fatores, incluindo o suporte social recebido. Estudos mostram que comunidades com forte coesão social tendem a se recuperar mais rapidamente dos traumas coletivos.
Ansiedade, estresse pós-traumático, luto e depressão são algumas das principais consequências mentais que os gaúchos experimentam após a tragédia. Para aliviar e tratar os sintomas, além da ajuda médica profissional, especialistas recomendam o engajamento em atividades de ajuda humanitária.
“A ajuda humanitária carrega muita força emocional. Às vezes você encontra um lugar de paz em um abraço, sorriso ou gesto”, afirma Torturella (2024). Essa perspectiva é corroborada por estudos que mostram como o altruísmo e a solidariedade podem ser fatores protetores da saúde mental em situações pós-desastre.
“Talvez o maior prejuízo dessa catástrofe seja o emocional. As perdas materiais nós podemos recuperar, mas a dor que fica é que é a grande perda. E isso vai demandar um esforço muito grande”, conclui o professor Nilo Torturella.
Um ano após a tragédia que transformou o Rio Grande do Sul, a reconstrução física avança, mas as cicatrizes emocionais permanecem. O caminho para a cura psicológica é tão importante quanto a reconstrução de casas e estradas. Reconhecer a legitimidade desse sofrimento e oferecer suporte adequado são passos fundamentais para que, além de reconstruir paredes, possamos também reconstruir sorrisos e esperanças.
A enchente de 2024 nos lembra que somos vulneráveis diante das forças da natureza, mas também nos mostra a extraordinária capacidade humana de se reerguer, de se reinventar e de encontrar força onde parecia não haver mais nada. É nessa resiliência coletiva que reside a verdadeira reconstrução.

 

Texto: Luam Ferrari

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